"Na Incoerência das Eras".
Não sabe o que é pensamento
E jamais terá juízo”.
Bandeira
Era uma noite fadada a tragédia. Iniciou-se calma. Eu havia combinado de encontrar com alguns amigos: um que estava morando fora da cidade; e outro, que já era um porra-loca habitual. Não demorou muito e logo nos encontramos na vila S* C*. Assim, do nada, apareceu um litro de caninha, a tira colo; ao qual passamos a tomar em pequenas doses – menos eu, que não estava podendo beber (que pena!).
E ali ficamos, jogando conversas fora, jogando bebida dentro. Estávamos em um local que a malucada havia dado o gentil nome de Praça “Raul Rock Seixas” – local este de várias histórias. Mas Pedrão (digo, São Pedro) parecia não estar querendo cooperar. Não tardou em ouvirmos um forte trovão ecoar atrás dos montes da serra – com certeza viria chuva em breve. Tratamos de sair dali, e rumamos para o bar do R*. Aquela altura o litro já estava seco. Chegando no bar, encontramos com outro grande amigo, que estava com sua namorada e mais duas garotas. Cumprimentos calorosos de lá e de cá, muita risada e gozação. Já conhecíamos as outras duas garotas. Porém, infelizmente, uma delas era muito chata, e em outra oportunidade já havia me enchido a paciência. Comecei a crer, que aquela, era mesmo uma noite fadada a tragédia.
Este nosso amigo que estava no bar, tomava vinho com as garotas, e tratamos de arrumar mais copos e de renovar ao conteúdo de todos. Novamente, a conversa era jogada fora, a bebida jogada dentro; os humores já começavam a ficar alterados, os risos e gargalhadas se espalhavam. Em meio a isso, meu amigo porra-loca já foi logo pedindo uma dose de algo mais forte – não era Amelie Poulain, mas era Amélia, o que ele pediu. Ele deu um gole na bebida, ofereceu a alguém, que também tomou e pôs o copo sobre o balcão. Não demorou nada e um fato estranho ocorreu: o copo da bebida, que ele tinha acabado de pôr sobre o balcão, de repente, sem mais nem menos, tombou, vertendo todo seu precioso conteúdo. Lamentos foram ouvidos pela tragédia inexplicável. Claro que houve um cotovelo, que ninguém viu, esbarrando em um copo, mas isso não vem ao caso. Sem perda de tempo, foi pedido outro copo de Amélia – que não era ‘aquela que é mulher de verdade’; mas era Amélia.
Neste meio tempo, como o previsto, a garota ‘xarope’ veio me infernizar. Não lhe dei muita atenção; não queria perder o humor naquela noite – mal sabia eu que seria difícil.
Tanto seria difícil, que algo terrível aconteceu: um copo tombou novamente! Novamente, a Amélia espalhava-se sobre o balcão; era como se fosse o próprio sangue derramado de Amelie Poulain, ou ‘daquela que era mulher de verdade’.
E foi o início do caos. O dono do bar xingou muito pela desordem, por sujar seu balcão; o porra-loca, como era costume, começou a rir sem parar; o amigo de fora, também teve um ataque de riso; o outro amigo começou a brigar com sua namorada, discutindo muito e se xingando mutuamente; a garota chata, continuava a me infernizar; um outro cara queria briga, pois parecia estar de olho em uma das garotas.
Era realmente uma noite fadada a tragédia.
Dessa forma, a chuva, que se anunciara pouco antes, finalmente caiu. Mas não foi uma simples chuva, foi um gigantesco temporal. Era como se Pedrão (digo, São Pedro), também soubesse que aquela noite estava fadada a tragédia, pois liberou as torrentes dos céus. Uma forte tempestade começou a desabar impiedosa: relâmpagos estridentes, trovões poderosos e velozes rajadas de vento e chuva, preencheram a noite. As portas do bar tiveram que ser baixadas, pois não havia local em seu interior em que a chuva não atingia. Mas nada adiantou: a inundação, veio rápido. Subiu quase metro e meio. Era gente sobre o balcão, era gente sobre a mesa de bilhar. Durou horas. As águas baixaram lentamente, levando embora o pouco de bom humor que ainda me restava, e um peixinho de aquário.
Findo o temporal, uma teimosa e renitente garoa ainda insistia em cair. Meus amigos – fora o que tinha namorada – e que estavam bem mais embriagados do que eu, pareciam estar mais humorados. Um deles, o de fora, queria porque queria levar as duas garotas embora. Eu não quis ir, sabia que não daria certo – conhecia a elas (e havia ainda o complicador da garota chata!) – sabia que não valeria a pena tomar aquela garoa toda até a casa das garotas, por nada. Este amigo tanto insistiu que acabou convencendo ao outro, o porra-loca. E assim eles foram com as garotas, atrás de sexo casual – o que eu vim a saber depois, que não ocorreu, como já previra.
Eu por minha vez, rumei para casa. O trajeto não era muito longo, apesar de cansativo. Ia perdido dentro de meus pensamentos, quando fui despertado por um forte relâmpago que brilhou no céu e iluminou a noite toda, seguido sem tardar por um estrondoso e impressionante trovão, que abalou aos morros. Pensei em correr, pensei em me esconder. Mas para quê, se logo novo temporal desabou, varrendo e encharcando a tudo? Não havia porque correr, não havia onde se esconder.
E foi assim que segui meu caminho, pisando forte nas poças, chafurdando na lama; e com o corpo, e alma, encharcados pela tempestade.
Era mesmo uma noite fadada a tragédia.