A Energumena Grei...
Quando sentimos o peso de nossos erros sobre as costas quando sentimos a aflitiva pressão em nosso peito por nossos pecados, não há cama macia que nos alivie o corpo, não há cobertor suficiente que nos aqueça a alma. Somos nós mesmos, os nossos maiores verdugos, pois de nossa consciência não há fuga. E ai daquele que ainda tentar resistir e se opor a seu castigo.
Estava ele subindo uma encosta rochosa, muito íngreme, o esforço era grande e cansativo. Plínio suava bastante, e a toda hora, tinha que procurar com cuidado onde apoiar os pés e também suas mãos, pois estava praticamente escalando aquela encosta. Contudo, a difícil subida e o esforço físico estavam lhe agradando.
Plínio continuou subindo até chegar à entrada de uma caverna. A princípio não tinha a menor idéia de onde estava; porém, sentiu uma vontade incrível de entrar naquela caverna. Não estava com medo, sentia até, uma certa satisfação em estar ali; talvez fosse pelo estado em que se encontrava, talvez pela vergonha que lhe dominava todo seu ser, não sabia bem o porquê, mas lhe agradava a idéia de se por caverna adentro.
No fundo era devido à imensa vontade que ele estava de se afastar de tudo e de todos; de se esconder, para que ninguém pudesse ver o mísero e mesquinho ser que ele era; e para que ninguém pudesse descobrir seus erros e as péssimas ações que realizara nos últimos dias. Sentia que um ser tão baixo como ele deveria viver em uma caverna como aquela, longe do mundo, que estaria melhor sem sua podre presença.
E foi com esses sentimentos que Plínio adentrou naquela caverna. Logo na entrada, pode ver a grande quantidade de papoulas que cresciam no local, em meio a outras plantas. Conforme ia entrando notou que uma densa névoa começava a se desprender do chão até quase a altura de seu peito. Era uma pesada névoa, mas que não impedia de se ver através dela. As sombras dominavam todos os cantos, havia apenas um fraco brilho de luz.
As descrições desta caverna, não lhe pareceram estranhas, conhecia aquelas características, já ouvira falar dela, isso era certo. Com a curiosidade aguçada foi se entranhando mais e mais. O silêncio reinava soberano no fundo do rochedo, e só foi sutilmente quebrado, quando mais à frente, Plínio deparou-se com um rio de águas calmas; mal se ouvia o murmúrio das águas que corriam lentas e preguiçosas.
Os olhos de Plínio começaram a pesar, começou a sentir-se sonolento. Foi então, que num rompante, sua memória abriu os braços, lhe sorrindo, acolhendo-o em seu peito. Foi só ai, que Plínio recordou-se daquela mitológica caverna: era a “Gruta do Sono”. Isso explicava as papoulas da entrada, de cujo suco, diziam, a Noite extrai o sono, para espalhá-lo a Terra enegrecida. E aquele rio, de mansas águas murmurantes, era o tão afamado rio Letes.
Seu espanto foi grande, quando ele deparou-se com esse fato, pois ali estava ele, onde o deus Júpiter – ou Zeus – não ousa entrar, onde o galo não canta nunca, nem cão nenhum, nem ganso, nem nenhum outro animal perturba o silêncio. E foi com grande espanto e admiração que Plínio continuou sua exploração àquela mitológica gruta. Aos poucos os sonhos começaram a reunirem-se ao seu redor. Viu sorridentes sonhos infantis, de bochechas rosadas e com o semblante de anjos; jovens sonhos apaixonados de olhinhos brilhantes; sonhos libertinos de sorrisos lascivos; sonhos de conquistas de riquezas e amores; ambiciosos sonhos sorrateiros; sonhos malignos. Eram diversos e variados os tipos de sonhos que ele pode ver no reino de Hipnos, o deus Sono. Sentiu uma imensa vontade de pedir abrigo ao deus Sono, desejou viver imerso no rochedo, por toda a eternidade, para que a civilização nunca mais visse seu rosto, tanto era o constrangimento e a vergonha em que Plínio se encontrava.
Enquanto caminhava, sentia o ar estagnado, ali o tempo não exercia seu poder, não conhecia passagem. E era a tudo isso que Plínio desejava se entregar, e onde pagaria seus pecados.
Assim que chegou ao centro da caverna, Plínio viu um grande leito negro, adornado com cortinas de negro ébano. Viu Hipnos, o deus Sono, cochilando preguiçoso, ele revirava-se na cama despreocupado, com suspiros de satisfação.
Plínio quis aproximar-se, para lhe render louvores e lhe pedir abrigo, mas foi impedido por dois de seus ministros: – O que pensas estar fazendo? – indagou em baixa voz, o que se chamava Ícelo.
– Eu... – ia dizendo Plínio, mas foi interrompido pelo outro ministro do deus Sono, de nome Fantasos: – Cala-te! Não ouse pronunciar uma palavra se quer, produzir um ruído que seja, insolente!
Plínio ficou atônito, começou a sentir medo pelo tom ameaçador dos ministros. Nisso, Morfeu, o mais famoso ministro do Sono, também se aproximou. Fez com que Plínio se afastasse do leito do deus Sono, e disse-lhe: – O que pretendes com tamanha insolência?
– Procuro abrigo e refugio; um lugar onde enfiar este meu triste corpo, de onde nunca mais sairei. Sou apenas um vulto, uma sombra sem brilho, sem vida, e não há mundo melhor para eu, do que aqui! – respondeu-lhe Plínio.
– Humanos sujos! Cometem todo tipo de perversidade, cometem os piores pecados e os piores erros, e depois se escondem de medo! Medo de enfrentar as conseqüências de seus atos! Acham que podem enganar ao cego deus Destino; pensam que podem escapar da espada da deusa Têmis, a Justiça! – Morfeu falava-lhe, severamente, enquanto Plínio ouvia tudo calado, pois sabia ter ele razão.
– Vá-te daqui! – completou Morfeu.
Plínio amedrontou-se, e horrorizado, viu-se cercado rapidamente por seus piores pesadelos. Figuras medonhas e ameaçadoras avançavam em sua direção. Viu a fome e a pobreza avançarem de mãos dadas, eram terríveis figuras sem carne, com a pele colada aos ossos, os olhos esbugalhados quase a saltarem de suas órbitas; viu também a velhice, com seu caminhar decrépito, sem dentes, os olhos esbranquiçados e com pouquíssimos fios brancos de cabelo em sua cabeça. Logo atrás vinha a terrível doença, com seu corpo todo murcho, sua pele coberta de feridas, era toda sangue e pus, caminhava arrastando uma perna, e tossia muito, escarrando sangue.
Ele não suportou mais aqueles tormentos. Saiu correndo, caindo pelo caminho, pois suas pernas estavam moles devido aos efeitos soporíferos da Gruta do Sono. Seus pesadelos continuavam perseguindo-o. Plínio, não sem dificuldades, terminou por atingir a saída da gruta, mas ainda podia ouvir os medonhos uivos e as lamúrias de seus pesadelos, que continuavam em seu encalço. Desceu como pode a íngreme encosta da montanha. Ficou cheio de cortes pelo corpo e com a sola dos pés e a palma das mãos, em carne viva.
Chegou esgotado aos pés da montanha: sem fôlego, sem forças, sem alento.
Ficou caído ao chão por longos minutos, lamentando seu triste fado. Quis despertar logo deste terrível e angustiante sonho, mas era tudo em vão. Levantou-se com muito custo e começou a caminhar, arrastando seu corpo, sem rumo. Seus pés feridos causavam-lhe dores tremendas ao caminhar. Viu, logo à frente, um imenso campo de girassóis. Para todos os lados que olhava via-se um mar amarelo de girassóis: e para seu espanto, aqueles não eram girassóis comuns. Em seu estranho sonho, aqueles girassóis possuíam o rosto de pessoas. Cada girassol era como se fosse uma pessoa, com o rosto voltado ao céu, acompanhando o sol em seu trajeto.
E Plínio ficou ainda mais horrorizado, quando viu dentre aqueles girassóis humanos, seu amigo Nelson. Correu então até ele: – Nelson que triste castigo é este meu amigo?
– Este é o castigo dos ímpios e dos impuros! – respondeu-lhe Nelson, com tristeza em seus olhos, e com a cabeça voltada para onde estava o sol.
– Não te entendo Nelson, como isso é possível?
– Este é o castigo para aqueles que tentam esconder seus crimes meu amigo, assim como eu, e também você. O pior castigo para o criminoso que tenta se esconder é ficar exposto aos olhos de todos.
Nisso, outro girassol-humano que estava ao lado de Nelson, interrompeu a conversa: – Não se engane Plínio aqui também é o seu lugar, ao lado de nós todos.
Plínio reconheceu aquela voz e com grande pavor constatou o que já sabia – enquanto aquele girassol, com o rosto do Dagoberto, disparava uma gargalhada demoníaca.
– Você é tão sujo quanto nós, Plínio! – continuou Dagoberto – Querendo ocultar seu crime, sua culpa, querendo se esconder na escuridão. Terá por fim o mesmo castigo que nós: terá que fitar o sol por toda eternidade, para que a luz do Astro-rei, deixe amostra todos os seus crimes e toda sua vergonha!
Em ouvir isso, Plínio começou a sentir algo em suas entranhas. Sentiu os pés grudados ao chão, e viu horrorizado, que os dedos de seus pés se convertiam em raízes e estavam adentrando a terra. Notou que sua pele estava ficando esverdeada, os cabelos transformando-se em pétalas amarelas. Tentou fugir, mas não pode; tentou gritar, mas faltou-lhe voz.
Dagoberto continuava a gargalhar, e sua risada parecia a do próprio Demônio. Os braços de Plínio já não era nada mais que folhas; seu corpo, um longo talo sustentando a grande flor em que se transformara sua cabeça. Logo sentiu uma força incoercível, lhe forçando a voltar sua face para onde estava o sol.
E aquele magnífico sol, que tem o poder de alegrar e de fortalecer ao homem puro, tem também a força de abrasar e queimar a alma do homem impuro e pecador. O que para uns é uma dádiva para outros é um castigo insuportável. Não há nada pior do que a radiante luz do sol, para aqueles que buscam a escuridão.
A luz ofuscou seus olhos. A dor e o desconforto de Plínio era enorme; e enormes eram, seu desespero e sua vergonha.
E era com extremo horror e vergonha que Plínio se via agora, tendo que contemplar a luz do carro do sol por todo o seu trajeto no céu.
Faltou-lhe verdadeiros olhos humanos aquela altura: faltou-lhe lágrimas para chorar...
Plínio estava encharcado de suor quando despertou (gritando!) deste sonho, ou mais precisamente, deste pesadelo.* * *
Sentiu sua alma minúscula, sentiu-se o mais miserável sobre a terra.
“Quantos erros, quanta vergonha!”
Que merda de vida possuía ele, na qual nunca produzira nada de bom, tudo o que punha a mão, transformava-se em lixo. Era a triste e peçonhenta versão do rei Midas – que transformava tudo em ouro – só que nosso atormentado Plínio, transformava tudo em imundícies.
Só despertou por completo, quando sentiu uma mão pousar-lhe em seu ombro.
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