Anjo Torto.
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.
Ah, entre o medo que o meu ser aterra,
Não sei se vivo pra morrer na terra,
Não sei se morro p'ra viver no céu!”.
Augusto dos Anjos
A tristeza que dominava aquele ser assemelhava-se a uma âncora – presa a seu pescoço por grossos elos metálicos de uma corrente. Havia errado pela vida como um vagabundo sem direção, tal qual carregasse um duro e insuportável fardo de amargura e cansaço. Entregue, via-se réu de uma culpa que não sabia qual, não compreendia qual, poderia ser.
Da ponte onde estava, ouvia apenas o barulho da água que corria veloz por entre as pedras que ele não podia ver na escuridão, mas que sabia estarem ali, bem abaixo de si. A bruma noturna que subia do rio, e que ajudava a gelar a noite, lhe parecia ser um convite a mais ao abandono extremo que pretendia realizar.
Um mergulho. Precisava apenas de um mergulho para dentro do nevoeiro da noite, para por fim a seu cansaço, para, enfim, encontrar a paz.
Estava cansado de sua vida cheia de infortúnios e dissabores; cansado de ser assistido apenas pelo azar e pelo mal-agouro. Não queria mais saber de nada. Nada nesta vida lhe dizia mais respeito; nada mais lhe interessava e lhe prendia. Estava livre: liberto de qualquer remorso. Entendia seu desgraçado ato como uma dívida que vinha saldar junto ao mundo. Sabia não ser benquisto por nada e nem ninguém. Era um peso inútil sobre a terra, por onde caminhava errante, causando transtorno, levando descontentamento por onde fosse, fazendo tudo ao contrário, tudo do avesso. Sabia ser um imprestável sem lugar nesta terra; e nada era mais justo do que livrar o mundo deste fardo morto e pútrido que era; pois era assim mesmo que se sentia: já morto – só havia esquecido de se deitar à cova.
Respirou fundo, subiu no peitoril de concreto da ponte, sentiu pela última vez a brisa noturna soprar a névoa gelada em seu rosto, e sem tardar, pendeu o corpo à frente, se lançando ao ar.
A queda foi rápida. Já não pensava em mais nada, já não sentia mais nada. Aguardava apenas o infalível encontro com as duras pedras que fendiam as águas do rio.
Porém, o estranho da situação, foi ele sentir seu corpo desacelerar, como se algo estivesse impedindo sua queda, suportando seu peso no ar. Era como se as brumas que se desprendiam do rio, de tão densas, estivessem suportando seu corpo, desacelerando a queda. Sentiu que tocaria o rio a qualquer momento, mas sem velocidade alguma.
Quando tocou a água – e as pedras – perdeu os sentidos.
Sentiu-se em paz.
* * *
Foi quando ouviu alguém tossir.
Voltou rápido sua cabeça na direção de onde vinha a tosse, e sobressaltou-se com a presença de um individuo que estava de costas para ele.
– Quem é você? – perguntou ao estranho, que nada respondeu e que continuava tossindo.
– Quem é você? – o rapaz tornou a perguntar, enquanto examinava ao outro.
Seu coração bateu apressado. Estava diante de um anjo, não muito robusto, mas tinha certeza que era um anjo. Hipnotizado, e temeroso, foi se aproximando lentamente daquele anjos. Só estacou quando o anjo lhe falou: – Sim, você esta certo. Sou um anjo. Sou seu anjo da guarda.
Perplexo, e sem saber ao certo o que dizer, o rapaz indagou: – Então... quer dizer... que eu estou morto? E você veio aqui... me recepcionar... me conduzir?
Silêncio. Fez-se um breve silêncio, até que o anjo respondesse: – Não. Você ainda não está morto.
– Mas como? – ele indagou, sem compreender o que ocorria.
– Você está apenas desacordado. Fora de seu corpo, apenas, temporariamente – o anjo respondeu. – Quando você se lançou da ponte eu o segurei, tentando suportá-lo no ar. Todavia não consegui impedir que caísse no rio e se chocasse nas pedras. Tive que lhe tirar de dentro das águas. Mesmo assim, não se preocupe: o ferimento foi leve.
– Mas... mas, por que você me impediu? Por que não deixou que morresse? – assim falou o rapaz, e tocou de leve no ombro do anjo. Sentiu um violento choque percorrer-lhe todo. Recuo assombrado.
– Não me toque! Pode lhe custar caro! – o anjo respondeu, com irritação, e virando o rosto apenas de perfil, fitando o rapaz. – Você não morreu por que ainda não era sua hora! Você tem muito ainda que viver!
Quando o rapaz fitou os olhos do anjo, amedrontou-se. O olho de seu anjo da guarda brilhava como um pequeno sol azulado.
– Como não era minha hora? – ele perguntou vacilante e meio cabisbaixo. – Não suporto mais viver. Viver me amedronta tanto! E como não era minha hora... se nunca... nunca me senti realmente vivo... Como?
– Você não entende; não pode compreender. Há sempre algo a se realizar na vida; há sempre algo divino, a se realizar em vida. E é por isso que estou aqui. Vim em seu auxílio, vim lhe abrir os olhos.
Assim falou o anjo da guarda, e logo se pôs de pé. Virou-se na direção do rapaz e começou a caminhar na direção deste.
No entanto, para assombro e revolta do rapaz, ele notou que seu anjo da guarda era coxo, mancava de uma perna – e pior que isto – era também vesgo.
Constatando estes fatos, o pobre rapaz lançou-se ao chão e passou a socar a testa nos pedregulhos do solo, em lamúria, e lamentando em choro, entregue a seu desespero.
– Veja só, como desgraçado sou! – falou o rapaz, elevando agora os braços, e voltando sua face encharcada de lágrimas aos céus. – É por isso que em minha vida toda, tudo acontece ao contrário! e tudo me vai caminhando torto! Veja isso, meu Senhor! Como suportar e enfrentar a vida, se meu próprio anjo da guarda é coxo e vesgo! Se meu próprio anjo da guarda é um anjo torto?! Como, meu Senhor... Como?!