Batracomiomaquia.
“Quando tiveres eliminado o impossível, o que quer que reste, por mais improvável que seja, deve ser a verdade”.
Conan Doyle
José Antônio de Jesus, acordou bem disposto naquele dia estranho e fatídico. Ficou deitado por mais alguns minutos antes de se levantar, como fazia todo dia. Aquela altura sua mulher já estava na cozinha preparando o café da manhã.
Assim que José Antônio se levantou, caminhou vagarosamente até o banheiro. Deu um boa olhada para sua cara no espelho: era a mesma cara de sempre, um pouco inchada por ter acabado de acordar, e já com boas rugas deixadas pelo tempo, mas a mesma cara.
Ele lavou seu rosto, deu uma boa espreguiçada e voltou para o quarto se vestir. Mas assim que abriu o armário, notou que seu paletó predileto não estava no cabide. Estranhou o fato, mas sua esposa deveria ter pegado para lavá-lo, passá-lo, ou algo assim. Não se preocupou muito com isso, quando ele fosse para a cozinha ele perguntaria para sua mulher.
José Antônio, vestiu outro paletó qualquer, arrumou a gravata, calçou um par de sapatos lustrosos e depois voltou ao banheiro para pentear o cabelo. Ele deu uma boa ajeitada no cabelo e depois, outra boa olhada para sua imagem no espelho. José sempre achou que ficava muito bem de paletó e gravata, e naquela manhã não era diferente.
Tão logo se aprontou, José Antônio foi para a cozinha tomar seu desjejum. Mas o que ele viu lhe chocou e lhe deixou completamente confuso: assim que ele chegou na entrada da cozinha viu sua esposa sentada à mesa de café, tomando seu desjejum e conversando alegremente com outro homem.
Mas o pior, o mais incrível, é que aquele homem, era ele mesmo. Era um outro José Antônio, exatamente igual a ele.
Este outro José Antônio, estava usando seu paletó predileto, tinha o cabelo penteado igualzinho ao seu, e estava tomando café preto e comendo torradas com geleia de amoras – a sua predileta. Aquele outro homem, era realmente, idêntico a ele. José Antônio ficou estático na porta, sem saber o que fazer. Voltou para o corredor, e ficou espreitando.
Mas como aquilo era possível?!
Se hoje pela manhã, ele acordou foi até o banheiro, viu seu rosto no espelho, e viu que ele, era ele mesmo; e agora chegando ali na cozinha, se deparara com outro José Antônio, como?
Não... era estranho demais.
Será que tudo aquilo era um sonho?
Será que ele ainda estava dormindo?
Não, José Antônio nem precisou beliscar-se, ele sabia que não estava dormindo. Mas se ele não estava dormindo, e haviam dois José Antônio – ele, e o outro que tomava café – Um dos dois era irreal, um dos dois não existia.
José Antônio, não soube o que fazer, nem o que falar. Ficou apenas olhando, sua cópia na mesa com sua esposa. Ele começou a suar frio, não estava entendendo o que se passava.
De repente, por detrás de onde ele estava, seus dois filhos passaram correndo, e foram abraçar e beijar sua esposa e seu sósia, que estavam a mesa. Sua filhinha mais nova, sentou-se toda feliz no colo do outro José Antônio. Mas o pior, era que seus filhos tinham passado por ele, e nem haviam notado-o ali parado de pé no corredor.
José Antônio sabia quem ele era, sabia que aquela era a sua família, mas o que ele não sabia, era quem era aquele, sentado a mesa com sua família, tratando a eles com carinho e atenção: brincando com sua filha, sentada em seu colo.
Puxa, a quanto tempo José Antônio não tratava seus filhos e sua esposa com tanto carinho, quanto à cena que via agora. Sentiu-se mau por não ter dado a atenção e o carinho que sua família precisava, nestes últimos anos. O ritmo apressado de seu dia-a-dia, lhe tomava todo seu tempo e sua atenção. Que idiota ele se sentiu, vendo ali, sua família junta e tão feliz, e tudo o que ele havia esquecido de ofertar-lhes.
Mas agora, era diferente – estranhamente diferente! – pois havia outro José Antônio, e este parecia estar fazendo seu papel de pai e marido, melhor do que ele mesmo. O nosso José Antônio sentiu um ódio tremendo por aquela sua cópia. Sentiu vontade de pular sobre ele, agarrar em seu pescoço e lhe esganar, até ele não mais respirar. Este impulso era grande. José Antônio, pensou em correr até a gaveta do armário e apanhar uma faca, para cravá-la no peito de sua cópia, usurpadora de sua família. Ou então, esfaqueá-lo-ia com a faca de pão mesmo, que estava na mesa. Mas ele se conteve pensou no sofrimento que causaria a sua família: sua esposa; seus filhos, que ficariam traumatizados...
Ficou então, observando apenas, com uma grande amargura no coração.
Sua família estava alegre, sorridente à mesa, divertiam-se com as brincadeiras sem a menor graça, feitas por sua cópia. Mas ali José Antônio constatou outra verdade, a graça maior não estava na brincadeira feita por ele e sim na atenção e carinho que ele dispensava a seus filhos. Só que aqueles filhos eram dele, José Antônio, o verdadeiro José Antônio, pai daquelas crianças, marido daquela graciosa mulher, e... como ela estava linda naquela manhã. A muito tempo ele não via sua esposa tão radiante.
Meu Deus quanto mau ele devia ter causado a ela nestes últimos anos. Negando-lhe sua atenção, seus carinhos... Meu Deus, meu Deus! Quanta tristeza e amargura, ele devia ter lhe imposto pela simples displicência cotidiana. Recordou-se que eles mal conversavam, era apenas o trivial e o essencial. Já não viviam juntos, apenas conviviam entre si, apenas isto.
Uma grande melancolia se apoderou violentamente de José Antônio, naquele momento. Ele ficou observando sua cópia: como ele dava atenção a tudo que sua esposa falava, parecia que mais nada existia quando ela falava.
O ódio voltou a lhe atormentar a cabeça.
Quem é que aquele sósia fajuto pensava ser?!
Aquela era a sua família, aquela era sua esposa!
Por que é que ele estava tratando-os assim com tanto carinho?!
Usurpador safado da família alheia!
Será que ele não estava vendo-o ali, o verdadeiro José Antônio?! O patriarca daquela família, o único e verdadeiro José Antônio de Jesus!
E naquele momento... uma dúvida terrível se apoderou de José Antônio:
Será que ele era realmente o verdadeiro?
Será que, não seria ele, a cópia?
O sangue gelou em suas veias. Isso não poderia ser possível! Mas ali estava a sua frente: outro José Antônio, vestindo seu paletó predileto, comendo torradas com sua geleia predileta! Uma confusão total se armou na cabeça de José Antônio, que pensou em fazer mil coisas, pensou em fazer mil loucuras. Só foi despertado de sua confusão quando seu sósia se levantou. Ele beijou sua esposa amorosamente, depois, abraçou e beijou seus filhos por diversas vezes. Apanhou a pasta de trabalho de José Antônio e saiu para o trabalho.
O nosso José Antônio ficou estático. Pensou em ir falar com sua esposa, aparecer a seus filhos, mas teve medo. Teve medo, de que eles o repudiassem e preferissem ficar com o outro, que era mais amoroso, mais atencioso; um verdadeiro pai, um verdadeiro marido.
E a dúvida ainda persistia: qual dos dois era o verdadeiro?
Mas de repente, para o nosso José Antônio, aquilo passou a ter importância menor. Ele já estava quase acreditando, ser ele a cópia, e não o verdadeiro. Sua cópia estava pouco a pouco lhe roubando a vida.
E o que lhe sobraria então? Pensava José.
Ele não soube responder. Entristeceu-se apenas.
Mas afinal, sua família estava bem, estava feliz, e isso era o que importava. Aquela altura sua cópia já havia se tornado parte de suas vidas, era ele o ente querido, o herói de seus filhos, o sustentáculo da família. Enquanto que ele – o nosso José Antônio – era apenas uma vaga lembrança de um pai relapso, de um marido desleixado.
Tudo já estava acertado. Ele já não era mais necessário. Sua cópia, estava fazendo seu papel, e melhor do que ele mesmo.
Nosso José Antônio, caminhou vagarosamente devolta para o quarto. Fuçou sobre o guarda-roupas e pegou uma pequena caixa preta. Retirou um objeto metálico de dentro, armou seu mecanismo e foi até o banheiro.
José Antônio, fechou a porta atras de si, e girou a chave na fechadura.
Ele ficou parado em frente ao espelho observando seu rosto.
Quem era aquele, que ele via no espelho? – perguntou-se.
Aquela altura José já não sabia mais.
Já não sabia quem ele era, e nem quem era realmente José Antônio.
Ele pegou o objeto metálico e o encostou em sua cabeça. Respirou fundo deu uma boa e última olhada em seu rosto no espelho e apertou o gatilho.
É triste acordar, e descobrir que você não é ninguém.